Impacto emocional e tratamento após tragédias.

A realidade e o apoio que precisa ser oferecido à população de Santa Maria.

Dr. Jose T. ThoméVivemos um momento de dor, e eu não desejo manifestar-me como “oportunista” a partir de um acontecimento tão triste como o que ocorreu em Santa Maria, no dia 27 passado. A dimensão do sofrimento que sentem os pais que perderam seus filhos, os amigos, professores e pessoas das comunidades que foram violentadas por essa tragédia, somente eles próprios podem descrever. E como brasileiro, eu anseio por estender a todos a minha solidariedade.

Na condição de médico especializado em psiquiatria e psicoterapia, que há quase três décadas estuda e trata os impactos emocionais e consequências psíquicas que afligem populações expostas em desastres, entretanto, devo alertar as autoridades do Estado do Rio Grande do Sul e do Ministério da Saúde, sobre algumas características de eventos como esse. Por exemplo, sobre a necessidade de comprometimento, e ações efetivas e duradouras, no sentido de prevenir e, quando necessário, oferecer tratamento em Saúde Mental, para as pessoas afetadas direta e indiretamente pelo incêndio.

Após desastres de natureza antropogênica, em que estão presentes características como as que foram noticiadas nas últimas semanas, as reações iniciais das pessoas são explosivas e se manifestam sob forma de desespero, revolta e intenção de identificar e punir as pessoas envolvidas em atitudes com influência direta sobre o desastre. Essas reações estimulam a impressão de que o problema será solucionado e, de alguma forma, a dor irá amenizar. Entretanto, na população afetada, o sentimento de perda e a percepção sobre a alteração imposta às suas vidas, emergirá com mais intensidade posteriormente. Por exemplo, para os alunos que retornarão às escolas e não encontrarão seus colegas, e para as mães que não terão mais a presença dos filhos durante o jantar. Será nesse período, semanas após as informações sobre a tragédia terem deixado os noticiários, que a presença de uma rede social de apoio, fundamentada em relações humanas, conhecimento especializado e confiança, poderá evitar que momentos de desordem emocional evoluam para quadros de adoecimento da sociedade.

Dimensionar o tamanho da população que deverá receber e poderá multiplicar iniciativas de suporte dentro dessa rede social, não é tarefa simples. Segundo dados da Rede Ibero-americana de Ecobioética / Cátedra UNESCO de Bioética, após catástrofes, surgem centenas de pessoas indiretamente afetadas emocionalmente, para cada indivíduo diretamente afligido no acidente. Assim, diante de uma situação extrema como a que está acontecendo em Santa Maria, sob a perspectiva da Saúde Mental – leia-se também promoção de Qualidade de Vida, não basta concentrar esforços em assistência às famílias que sofreram perdas, apenas durante os momentos iniciais. É necessário agir não somente sobre o momento, disruptivo e potencialmente traumatogênico, mas também por um período posterior longo, e contemplando todas as instâncias envolvidas na tragédia. Nesse caso, é indispensável identificar agentes multiplicadores e capacitar a mencionada rede social de apoio, que poderá amparar e acompanhar a população afetada, durante o doloroso período posterior ao acontecimento que modificou parte das suas histórias de vida.

É importante não esquecer que as famílias que hoje necessitam de apoio não sofrem de doença psíquica, e são compostas, na sua maioria, por pessoas estabilizadas, que foram submetidas em um momento de impacto emocional enorme, e compreensivelmente estão desestabilizadas, enquanto buscam representar psiquicamente o acontecimento que as abalou. Por isso, as iniciativas promovidas pelas autoridades não devem estar fundamentadas somente em consultórios, nem tampouco contemplar apenas ações terapêuticas emergenciais. Mas sim, promover políticas de reinserção, que considerem a realidade, a cultura, as tradições e as características humanas da população da região de Santa Maria, para reconstruir vínculos e o sentimento de segurança/confiança, entre pessoas, compreensivelmente, vulneráveis.

Infelizmente, a tendência em eventos que estimulam comoção nacional é revelar intervenções públicas pontuais e imediatistas, que oferecem apoio apenas durante o período mais agudo e recente do acontecimento, buscam acalmar a população, e a abandonam logo em seguida. Diante de uma situação tão desestabilizadora como a que ocorreu em Santa Maria, sem diminuir a importante contribuição humana e técnica que os profissionais voluntários ofereceram nos dias posteriores ao desastre, é indispensável observar e interagir em toda a cadeia de vínculos psico-relacionais que influenciam as pessoas afetadas pelo acidente. Afinal, não é possível, acreditar que pais que perderam filhos de forma tão abrupta, medicados ou não, participem em sessões semanais de psicoterapia e, em suas residências, atividades e cotidiano, acumulem suas emoções para expressá-las novamente, apenas na sessão da semana seguinte. Essas pessoas e toda a população que as cerca, precisam ser acompanhadas e receber apoio para que em conjunto, reconstruam os seus vínculos emocionais, sentimentos e tenham a percepção de sua resiliência, ou seja, a capacidade de se reconstruir depois de atingido pelo evento disruptivo. Nesse contexto, a contribuição oferecida por aqueles que eu denomino “cuidadores”, tais como educadores, sacerdotes, profissionais de assistência social, profissionais de saúde, autoridades e membros das comunidades locais, serão determinantes para reforçar a identidade e a união da população local.

Como referência do período de tempo em que as pessoas afetadas por desastres precisam receber acompanhamento especializado, e individualizado através de registro e consulta periódica aos seus históricos pré e pós evento, posso afirmar, com segurança e baseado em programas de apoio em situações análogas, que este não deve ser inferior a 3 anos. E, assim sendo, a diferença entre promoção de ações emergenciais, promessas e simples retórica política, e o suporte disponibilizado a partir capacitação da citada rede de apoio através de trabalho técnico/científico em Saúde, torna-se evidente.

A cultura e as tradições tão exemplarmente preservadas e presentes no estado do Rio Grande, são características facilitadoras para quaisquer políticas de reinserção e promoção de qualidade de vida, que sejam empreendidas na região. Assim sendo, caberá às autoridades municipais, estaduais e federais, a tarefa de somente cumprir os seus papéis, de forma responsável e integrada, para que o sofrimento gerado no último domingo de janeiro, não se perpetue durante anos, sob forma de adoecimento psíquico e comorbidades.